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A Fresta #1 – O diálogo em 1928

A Fresta, por Natan Schäfer
Arte de capa para A Fresta (assinada por Natan Schäfer). A arte é uma colagem de Benjamín Rivera-Mesa

A Fresta é uma coluna quinzenal dedicada às realizações do movimento surrealista e seus entornos.


O diálogo em 1928

Tradução de Natan Schäfer

Pergunta? Resposta. Simples trabalho de adequação que implica todo o otimismo da conversa. Os pensamentos de dois interlocutores seguem separadamente. A relação momentânea destes pensamentos as impõe para uma coincidência mesmo na contradição. Muito reconfortante, afinal de contas, visto que não há do que você mais goste do que perguntar ou responder, especialmente para você, o “cadáver-delicioso” encomendou algumas perguntas e respostas cuja independência, cuidadosamente imprevista, é também uma garantia. Não nos opomos a que espíritos inquietos vejam aí apenas uma melhoria mais ou menos sensível das regras do jogo “dos papeizinhos”. 

Raymond Queneau e Marcel Noll

N. O que é Benjamin Péret?
Q. Um jardim zoológico revoltado, uma selva, a liberdade.

*

N. O que é André Breton? 
Q. Uma liga metálica de humor e senso de desastre; algo como uma cartola. 

*

N. O que é um guarda-chuva? 
Q. O aparelho de reprodução nos gastrópodes. 

*

N. O que é uma esfera? 
Q. Substância análoga ao enxofre [1]. 

Aragon e Marcel Noll 

N. O que é o medo? 
A. Arriscar tudo em uma praça deserta. 

*

N. O que é a catástrofe? 
A. É a tranca dos encontros. 

*

N. O que é a pelagem? 
A. É o beija-flor que se lembraria do dilúvio brincando com a sombra dos peixes. 

*

N. O que é o fogo? 
A. As decalcomanias automáticas [2]. 

*

N. O que é um rastaquera [3]? 
A. Uma aterrissagem dançando. 

*

N. O que é o cansaço? 
A. A crueldade negativa, a selva abstrata das retiradas [4]. 

S.M. [Suzanne Muzard] e André Breton 

B. O que é o beijo? 
S. Uma divagação, tudo afunda. 

*

S. O que é o dia? 
B. Uma mulher que se banha nua no cair da noite. 

*

B. O que é a liberdade? 
S. Uma multidão de pontinhos coloridos nas pálpebras. 

*

S. O que é a exaltação? 
B. É uma mancha de óleo em um riacho. 

*

S. O que são os olhos? 
B. O vigilante noturno em uma fábrica de perfume.

*

S. O que é a lua? 
B. É um vidraceiro maravilhoso. 

*

B. O que plana por cima de S. e de mim? 
S. Grandes nuvens negras e ameaçadoras. 

*

B. O que é uma cama? 
S. Um leque aberto rapidamente. O barulho de uma asa de pássaro. 

*

B. O que é o suicídio? 
S. Várias campainhas ensurdecedoras. 

*

B. O que é a ausência? 
S. Uma água calma e límpida, um espelho movediço. 

S.M. [Suzanne Muzard] e Max Morise 

M. O que é um antropófago? 
S. É uma mosca em uma tigela de leite. 

*

M. O que é o reino vegetal?
S. É um buraco em um travesseiro de penas. 

*

B. O que é o gênio? 
S. Uma camada de verniz que se racha (a parte de baixo é desbotada), uma raiz profunda que descobre todo um mundo. 

S.M. [Suzanne Muzard] e Aragon 

S. Por que continuar vivendo? 
A. Porque na porta das prisões a única coisa que canta são as chaves.

*

S. Por que é preciso quebrar o gelo e o vidro [5] em caso de incêndio? 
A. Porque ele congela, os pensamentos patinam. 

S.M. [Suzanne Muzard] e Marcel Noll 

S. O que é um monte de pedras? 
N. Uma má operação. 

*

N. O que é a admiração? 
S. Um expositor de doceiro; as balas são substituídas por bolhas de sabão. 

N. O que é a primavera? 
S. Uma lamparina alimentada por vagalumes. 

N. O que é um general? 
S. Uma marcha cansativa sobre pedras pontiagudas… Viva o deserto, os camelos e à areia. 

N. O que é a viagem? 
S. Uma grande bola de vidro com vários reflexos. 

André Breton e Benjamin Péret 

P. O que é um magistrado? 
B. Um gaiato, um porcalhão e um babaca. 

P. O que é a igualdade? 
B. É uma hierarquia como qualquer outra. 

P. O que é a fraternidade? 
B. Talvez seja uma cebola. 

B. O que é o estupro? 
P. O amor à velocidade. 

P. Por que os cães uivam à lua? 
B. Porque as chaminés das fábricas são vermelhas. 

B. O que é o serviço militar? 
P. É o barulho de um par de botas caindo de uma escada.

P. O que é uma maré de sangue? 
B. Cale a boca. Risque esta pergunta abominável. 

B. O que é uma flecha? 
P. É um I que perdeu seu pingo. 

P. O que é dissimulado no fundo de um copo de licor de laranja-da-china?
B. Um nariz judeu.

B. O que é Baudelaire? 
P. Um soldado colonial que não sabe nem ler nem escrever e só come grama.

B. O que é a existência? 
P. Um carrinho-de-mão capotado que termina de apodrecer em uma praça pública ao lado de um cavalo estripado. 

P. O que é o diabo? 
B. A volta ao mundo em muletas. 

B. O que é um bebê? 
P. Um velhinho barbudo e gago que lê o folhetim O eco de Paris. 

Antonin Artaud e André Breton

A. O surrealismo tem sempre a mesma importância na organização ou desorganização de nossa vida? 
B. É a lama, em cuja composição não entra nada além de flores. 

A. Você pensa amar quantas vezes ainda? 
B. É um soldado em uma guarita. Esse soldado está sozinho. Ele olha uma fotografia que acaba de tirar de sua carteira. 

A. A morte tem uma importância na composição da sua vida? 
B. É hora de ir dormir. 

*

B. O que é o amor imortal? 
A. Pobreza não é vício. 

A. Noite ou abismo? 
B. É a sombra. 

A. O que mais lhe repugna no amor?
B. É você, caro amigo, e sou eu.


Sobre O diálogo em 1928 hoje

Natan Schäfer 
Curitiba, novembro de 2022

Que o senso comum é um dos maiores obstáculos à vida já não deveria ser novidade para ninguém. No entanto, é difícil manter-se indiferente ao fato de que muitos pareçam dispor somente dele e de nada mais para sustentar sua enunciação e, logo, seu ser. Lembro disso pois recentemente, em um texto publicado na revista Pessoa, apontei para o achatamento com que se pretendeu reduzir uma rodada do “jogo das perguntas e respostas”, tomado então por uma especialista em cinema e comunicação como mera “brincadeira linguística” [6]. Para não estender a queixa e alongar demais o ataque aos sisudos que confundem “lúdico” com “bobo”, “frívolo” e “anódino”, respondo desta vez com a observação realizada por André Breton no Segundo manifesto do surrealismo (1929), quando comentava as 

(…) diversas experiências concebidas sob a forma de ‘jogos de salão’ e cujo caráter desentediante, isto é, recreativo, não me parecem reduzir em nada seu alcance. 

Contudo, visto que, como afirma Nietzsche, “o homem indignado (…) é o caso mais comum, mais irrelevante, menos instrutivo” e que “ninguém mente tanto como o indignado” [7], para não restringir-me à “estupidez da indignação moral”, aqui nest’A Fresta apresento e traduzo pela primeira vez em português O diálogo em 1928, publicado na revista La révolution surréaliste e, até onde tenho notícia, a primeira coletânea de resultados do “jogo das perguntas e respostas” jamais impressa. 

Entretanto, antes de prosseguirmos, vale recordar que este jogo consiste em, como afirma Breton em nota ainda ao Segundo manifesto do surrealismo, criar uma “definição de uma coisa não dada”. Isto é, um dos participantes formula em segredo uma pergunta enquanto o outro, sem conhecê-la, elabora uma resposta, para isso dispondo apenas dos advérbios de interrogação, isto é, orientado apenas pelo tipo da pergunta (e.g. o que…?, como…?, quando…?, onde…?, etc.). Uma vez que os participantes sinalizam ter concluído suas respectivas elaborações mentais, o perguntador enuncia a pergunta que formulou em segredo, ao que o respondente revela a resposta que elaborou igualmente em segredo. 

É importante notar que, no Manifesto surrealista, quatro anos antes da publicação de O diálogo em 1928, Breton já se ocupava do assunto, conferindo-lhe grande importância ao declarar que

Ainda é ao diálogo que as formas da linguagem surrealista melhor se adaptam. Ali dois pensamentos se afrontam; enquanto um se entrega, o outro se ocupa dele, mas se ocupa como? (…) 

Vai sem dizer que não discuto que uma língua possa ser vista como um fato social. Porém, concordo com André Breton quando ele afirma no Manifesto do surrealismo que “a linguagem foi dada ao homem para que ele dela faça um uso surrealista”.

Ao perguntar como um pensamento se ocupa de outro, Breton diagnostica a insuficiência do modelo de diálogo socrático e, parafraseando Georges Perec [8], o “esgotamento por antecipação” dos modelos de comunicação desenvolvidos logo após a Segunda Grande Guerra [9] e amplamente disseminados até hoje, os quais não dão conta dos fatos e do que se verifica naquilo que denominamos e constituímos como realidade. Visto que esses modelos dariam conta no máximo da atenção “inteiramente exterior” ao diálogo racional, que “tem somente a oportunidade de aprovar ou reprovar, e geralmente de reprovar, com todas as considerações das quais o homem é capaz”, Breton sublinha que 

o surrealismo poético (…) se aplicou até aqui em reestabelecer o diálogo em sua verdade absoluta, liberando os dois interlocutores das obrigações da polidez. 

Ora, basta que consideremos nossos próprios diálogos com atenção para percebermos que eles costumam ser aparentemente bem mais arbitrários do que muitos gostariam. Isso para não mencionar os complexos caminhos dos afetos que fazem com que uma conversa aparentemente banal sobre, por exemplo, uma receita de molho pesto, possa despertar afetos fulgurantes. Quando duas vidas se re-encontram — pois todo encontro é re-encontro —, o que tem lugar é o encontro de dois rios abrindo para um delta que pode tornar-se oceânico. E se ambos os fluxos envolvidos dão passagem às torrentes do que têm de mais vivo, o surgimento de uma escada de faíscas é inevitável.

Do contrário, seguindo a norma das continências e atendendo às consignas lógico-morais do bom senso comum, chove no molhado e as bocas se abrem apenas em bocejos e jamais para o beijo do espanto.

Visto que o tédio é um dos maiores e ainda mais ignorados problemas da modernidade, vale situá-lo, ainda que brevemente, com relação ao diálogo [10]. Como Breton nota no Manifesto do surrealismo, em muitos diálogos “minha atenção, presa de uma solicitação que ela não pode decentemente rejeitar, trata o pensamento adverso como inimigo”. A partir da leitura que Alexandre Kojève faz de Hegel, suponho que o tédio face ao dito do outro se encontra no âmbito do desejo de “reconhecimento” e da “luta de morte por puro prestígio”, segundo a qual “desejo o Desejo do outro”, isto é, desejo

desejar que o valor que sou ou que “represento” seja o valor desejado por este outro: quero que ele ‘reconheça’ meu valor como seu valor (…) [11]

A partir disso, podemos supor que quem cede à covardia para não arriscar sua vida e não colocar em jogo com o desejo do outro o seu próprio, evitando assim usar as palavras e imagens como trampolins para o seu espírito, acaba por impor-se pela surdez, dirigida inclusive a si mesmo. Ou seja, aquele que é incapaz de encarar a falta se fecha aos fluxos, até mesmo aos seus próprios. Embora com isso seja poupada uma considerável energia, visto que a tarefa de abrir-se à escuta é ativa, bastante difícil, requer esforço e implica um risco, o problema segue sendo o destino do que é poupado. Pela nossa própria experiência sabemos que não raro essas economias se dissipam em sintomas pouco benéficos e ascendentes. Pensemos, por exemplo, naquele pacato feriado que facilmente se torna motivo de estresse. 

Um jogo como o das perguntas e respostas, que partilha suas raízes com outros jogos como o “cadáver-delicioso”, demonstra que, naquilo que se abre com os ditos ao longo de um encontro, há muita coisa passando por baixo da porta e pelas frestas das janelas. E, inclusive, a partir do que conheço da clínica psicanalítica, arriscaria mesmo dizer que estas passagens clandestinas, subterrâneas e aéreas, e, sobretudo as metonímicas, constituem o segredo do potencial transformador do diálogo e suas surpresas. 

Embora me seria motivo de grande prazer, aqui não procederei uma análise em detalhe das complexidades do diálogo, da conversa ou do debate. Há estudos ótimos sobre o tema, como por exemplo Uma história da conversa [Une histoire de la conversation], de Emmanuel Godo (Classiques Garnier, 2003), que elabora um vasto panorama da conversa desde a Grécia antiga até hoje. Aliás, citando Pierre Hadot, Godo afirma que “a filosofia grega é o fruto de uma vasta e ininterrupta conversa” — e talvez portanto tão entusiasmante. Quanto a isso, deixo que leitores como a helenista Camila de Moura e o professor de filosofia Daniel Liberalino expressem sua opinião e nos forneçam maiores informações. De todo modo, o que me interessa por enquanto é situar a posição central do diálogo na aventura do ser, visto que, como Jacques Lacan define, mais do que indivíduos, somos falasseres divididos, isto é, somos pelas falas que nos atravessam. 

Cumpre dizer que no início do século passado os surrealistas foram alguns dos aventureiros mais sensíveis à linguagem e aquilo que Lacan denominaria a “lógica do significante” [12], cuja compreensão permitiria grandes avanços no exercício da vida. Mais do que um esquema formalista destinado à assepsia e empolamento do discurso, a lógica do significante — que, vale ressaltar, não é a lógica aristotélica do senso comum — evidencia que há uma ordem outra dirigindo o diálogo, a qual não é governada pela intenção consciente e que escapa ao controle racional. Aliás, me parece que essa ordem sequer mereceria este nome, visto que, a meu ver, além de radicar na materialidade das palavras, ela talvez seja mais analógica do que discursiva. Embora Lacan discorde disso e se posicione contra a analogia [13] — que angaria muito mais simpatia junto aos herdeiros do pensamento de Carl Gustav Jung e das ciências ocultas —, suponho ser nesse âmbito que operam as comunicações que, em carta a Guy Cabanel, Breton define como “novas” e “que verdadeiramente não têm preço”, se dando “através de faíscas” [14]. Portanto, não é nesta direção que estaria apontando a vibração da forquilha em busca do segredo que rege a paixão, as afinidades eletivas, as grandes descobertas e o maravilhamento? 

Além disso, noto que, exceto quando assisti à peça Not I de Samuel Beckett em Berlim — e dormi —, ao ouvir alguém articular seu dito “ao vivo”, jamais ele se resume a um pensamento “solto” feito e emitido por uma boca apartada e isolada. Ouço a tapeçaria dos olhos, a gota de sol nos lábios, as marcas e cicatrizes nas mãos e todo um enorme rébus repleto de símbolos enigmáticos. O corpo e a cena guardam pistas daquilo que ainda desconheço, inclusive o desejo que me existe e mantém envolvido no encontro e sedento pelos acontecimentos daí decorrentes, como uma abelha se cobrindo de pólen dourado. A experiência desta necessidade faz pensar no ciclo do diálogo, ou seja, como ele brota, floresce e fenece, para então germinar novamente, com esse movimento possibilitando magníficas colmeias. Pensar o diálogo como um jardim é fértil. 

O “jogo das perguntas e respostas” é portanto um dos canteiros selvagens nos quais são reveladas os sabores e as cores mais vibrantes do jardim e onde se dá passagem à imagem que necessita de duas presenças para constituir-se. Novamente, isso evoca a preocupação dos surrealistas em colocar em xeque o “indivíduo” não-divido, que se crê homogêneo, coeso e igual aquilo que imagina ser. Portanto, o movimento surrealista se fundamenta na compreensão de que tanto o Eu quanto a sua realidade não se fazem sozinhos, mas sim em uma partilha ou mise en commun [pôr-em-comum]. Quanto a isso, em nota ao Segundo manifesto do surrealismo, Breton afirma que 

pensamos ter feito surgir uma curiosa possibilidade do pensamento, que seria a da sua partilha [mise en commun]. Sempre relações muito surpreendentes se estabelecem desta maneira, analogias notáveis se declaram, um fator inexplicável de irrefutabilidade intervém na maioria das vezes, e em suma este é um lugar de encontros os mais extraordinários. (…)

Considerar este lugar como o de encontros extra-ordinários, e não como simples “brincadeira linguística” ou algo “nada a ver” [15], denota que partimos da noção de que não há o que não faça sentido

Recordemos que no início do século passado este assunto já era objeto de discussão entre o pintor-poeta Francis Picabia e André Breton. Picabia insistia que tudo faz sentido, com o que Breton concordava, mediante a ressalva de que alguns signos teriam um sentido ascendente enquanto outros não [16]. Assim, podemos concluir que todo signo pode ser sentido. Caso um signo não faça sentido, isso se deve a um obstáculo ou a uma falta da falta. Daí também uma das possíveis origens da incompreensão perante o novo

Digo isso pois é quase invariável que, ao ser apresentado ao “jogo das perguntas e respostas” pela primeira vez, o participante novato exprima resistência, muitas vezes manifesta em um “como assim?”. Esta reação ocorre em parte pois, segundo o senso comum baseado no princípio de causalidade, para se dar uma resposta é preciso antes de mais nada conhecer a pergunta. Isso não denotaria uma vontade de tentar aproximar-se o máximo possível da resposta “correta”? Diante desta vontade de correção que nos conduz novamente às “obrigações da polidez”, é preciso lembrar que um dos principais modelos de pergunta e resposta do qual dispomos nos foi apresentado na escola, onde o questionário costuma compor uma “prova” que serve para calcular uma “nota” de modo a “avaliar” um estudante. Neste caso, a pergunta deixa de ser parte de um caminho de busca e investigação para tornar-se uma ferramenta de controle e coação, quando não de repressão ou ameaça. Porém, é interessante perceber aí uma dialética, a qual permite ao estudante apropriar-se desta ferramenta e contra-atacar com ela a autoridade do mestre, que no entanto pode dispor de diversos expedientes para assegurar sua posição. Além disso, não podemos esquecer das perguntas do tipo “O que é?, o que é?” e “Por que o policial não usa sabão?” que, por operarem no registro da piada, são desacreditadas pelo mau-humor dos “adultos”, sendo portanto abandonadas ou virando “coisa do tio do pavê”. Logo, acostumados que somos a um modelo de adestramento miserável e orientados de um lado pela rabugice e de outro pela ironia blasé, é bastante evidente que dar uma resposta a uma pergunta desconhecida seja algo vertiginoso e arriscado. E assim é o resultado decorrente deste jogo, que revela e traz algo à tona, ao que tudo indica, capaz de manifestar o inconsciente cintilante. E digo cintilante, isto é, que “reflete luz de modo intermitente”, pois penso na descontinuidade que lhe é característica, já que neste caso, como coloca Breton 

O controle odioso não funciona tão bem. O ser que você ama vive. A linguagem da revelação fala certas palavras bem alto, certas palavras bem baixo, por vários lados ao mesmo tempo. É preciso resignar-se a apreendê-la por fragmentos. 

Realizando o trabalho sobre a matéria necessário e atuando para que o inconsciente se manifeste nas frestas, podemos inclusive nos encaminhar para a “conversa automática” descrita por Thomas Mordant no segundo número da revista S.U.RR…, em 1996. Segundo Mordant: 

No entanto, o maior charme da fala automática ainda é para mim desembocar na conversa automática. Um grau elevado de intimidade e de confiança é necessário para que a conversa automática não siga em direção a uma teatralização. Eu a pratiquei sobretudo entre quatro paredes, mas também na rua e na floresta. Somente duas vezes a três, com maior frequência a dois. Estas conversas instauram uma conivência sem igual. As vozes se tocam e às vezes se acariciam, se justapõem, se sobrepõem, se encavalam, etc. É como um “jogo da verdade” com a poesia. 

Embora o que presida este tipo de acontecimento seja sobretudo o acaso e a lógica do próprio significante e suas faíscas, é interessante notar que no jogo, que parece diferir da “conversa automática” sobretudo pela escrita dos resultados, há sim uma participação do juízo, mas a posteriori. Isto quer dizer que, com frequência, após a surpresa imediata decorrente da revelação do resultado, face a um enigma ou a um par de pergunta e resposta pouco charmoso, entra em jogo o raciocínio e o gosto [17]. Aliás, nos arquivos do movimento surrealista podemos encontrar muitas respostas riscadas e descartadas. Isso se deve não ao fato de alguns dos resultados não apresentarem um suposto valor estético, do qual é inclusive difícil afastar o juízo e que, como pontua Jean-Claude Silbermann, também está radicado no inconsciente. Alguns resultados são deixados de lado ou para trás por não vibrarem as cordas do desejo e, em certas ocorrências, manifestarem os revezes e escórias inerentes ao processo de busca e descobrimento e as tendências descendentes próprias à qualquer relação dotada de duração. Pois o que se busca em um jogo como este é, mais do que o deleite oferecido pela pérola barroca, pelo diamante lapidado ou pela lama informe, é revisar a própria gramática do sensível — e ainda mais que revisar, abrí-la e ampliá-la. 

Eis aí um dos caminhos para enriquecer a experiência, articular a memória e exercer-se a vida em sua maior potência, traçando e trançando trajetos ascendentes que conduzem ao desconhecido. 


Artes de Benjamín Rivera-Meza.


[1] Em francês “sphère” e “soufre” são quase anagramas.

[2] Procedimento aperfeiçoado pelos surrealistas, sendo Oscar Domínguez um de seus principais praticantes.

[3] Cf. Jesus-Cristo rastaquera (1920), de Francis Picabia.

[4] Em francês, “la jungle abstraite de retraits”, sendo que “abstraite” e “retraits” são quase anagramas.

[5] Em francês “glace”, que pode tanto significar “vidro” quanto “gelo” ou “sorvete”.

[6] Cf. Disponível em: <https://www.revistapessoa.com/artigo/3531/algo-sobre-o-infinito-parte-ii>; acesso em 25 de novembro de 2022.

[7] Cf. Além do bem e do mal (Companhia das Letras, 2005), tradução de Paulo César de Souza.

[8] Ao discorrer sobre os precursores do lipograma, Georges Perec fala em “plágio por antecipação”.

[9] Como por exemplo os modelos de Shannon–Weaver e Lasswell, que pressupõem um emissor, uma mensagem, uma mídia e um receptor.

[10] Na terça-feira, 7 de outubro de 1919, André Breton escreve a Tristan Tzara: “Todos meus esforços estão momentaneamente dirigidos neste sentido: vencer o tédio”. Lembremos também que em seu poema “Ao leitor” Charles Baudelaire já discernia o tédio como o “monstro (…) mais feio, mais iníquo, mais imundo” que se encontra “no lodaçal de nossos vícios imortais” e que “sem grandes gestos ou sequer lançar um grito, / Da Terra por prazer faria um só detrito / E num bocejo imenso engoliria o mundo” (tradução de Ivan Junqueira).

[11] Cf. Introduction à la lecture de Hegel (Gallimard, 1968). Tradução nossa.

[12] Cf. La suture (Éléments de la logique du signifiant) [A sutura (Elementos para uma lógica do significante)], Cahiers pour l’analyse, n° 1 & 2 (1966), de Jacques-Alain Miller.

[13] Em Função e campo da fala e da linguagem (Escritos; Zahar, 1998), Lacan afirma que: “Analogia não é metáfora, e o recurso que nela encontraram os filósofos da natureza exige o gênio de um Goethe, cujo próprio exemplo não é animador. Nada repugna mais ao espírito de nossa disciplina, e foi ao se afastar expressamente disso que Freud abriu a via adequada à interpretação dos sonhos e, com ela, à noção do simbolismo analítico. Essa noção, dizemos nós, vai estritamente contra o pensamento analógico, que uma tradição duvidosa faz com que alguns, até mesmo entre nós, ainda considerem solidário” (tradução de Vera Ribeiro).

[14] Cf. L’animal noir [O animal negro] (L’Ether Vague, 1992), por Guy Cabanel e Robert Lagarde.

[15] Algo “nada a ver” poderia ser considerado até mesmo um dos opostos do lugar de encontros extraordinários. Pois como nos lembra William Blake nos Augúrios da inocência (1803), na tradução de Alberto Marsicano: Num grão de areia ver um mundo / Na flor silvestre a celeste amplidão / Segura o infinito em sua mão / E a eternidade num segundo [To see a World in a Grain of Sand / And a Heaven in a Wild Flower / Hold Infinity in the palm of your hand / And Eternity in an hour].

[16] Cf. Signo ascendente, de André Breton; disponível em: < https://www.sobinfluencia.com/post/signo-ascendente >; acesso em 24 de novembro de 2022.

[17] Cf. O gosto (Autêntica, 2017), de Giorgio Agamben.

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